O endividamento bateu recorde em 2022, segundo pesquisa da Confederação Nacional de Bens, Serviços e Turismo (CNC). No país, 77,9% das famílias estão endividadas. Trata-se do maior patamar desde o início da série histórica do levantamento, iniciado em 2011.
O brasileiro compromete, em média, quase um terço da renda para quitar dívidas. Em comparação a 2021, o endividamento familiar aumentou sete pontos percentuais. Na comparação com 2019, antes do começo da pandemia, o salto foi de 14,3 pontos percentuais. Antes da Covid-19, o endividamento seguia em trajetória de queda, principalmente entre os mais pobres.
— A pandemia tornou a dívida um problema dentro do orçamento familiar. O consumidor foi obrigado a contrair dívida com o fechamento do varejo e, depois, com a explosão do consumo reprimido, com a retomada — explica Guilherme Mercês, diretor de Economia e Inovação na CNC.
A pesquisa cita alguns fatores que levaram ao aumento do endividamento: a necessidade das famílias diante da pandemia e seus efeitos sobre o emprego e o fechamento dos negócios, a retomada do consumo depois do lockdown e inovações tecnológicas dos meios de pagamento.
Endividamento é maior entre os mais pobres
Embora ele aponte que houve crescimento de dividas em todas as faixas de renda, a parcela de famílias endividadas chega a 80% entre os mais pobres. Essa faixa, explica Mercês, foi mais afetada pelo aumento da taxa básica de juros (atualmente a Selic está em 13,75% ao ano) e da retração no mercado de trabalho em decorrência da crise causada pela pandemia.
A cada dez famílias no país, três atrasaram o pagamento de dívidas (28,9%). A parcela de famílias sem condição de pagar débitos em atrasou dobrou em relação a 2014, o ponto mais baixo da série, e chegou a 10,7%. De acordo com o levantamento, 43% dos consumidores inadimplentes atrasaram dívidas por mais de 90 dias.
O patamar de inadimplência tem forte variação de acordo com a faixa de renda. Entre as famílias com menor rendimento, a parcela com contas em atraso chega a 32,3%. Entre as de maior renda, o percentual fica em 13,3%.
Recorde de superendividamento
A Peic anual indicou que, do total de endividados, 17,6% se consideraram muito endividados, a maior proporção da série histórica. A cada 10 famílias com renda mais baixa, duas comprometeram mais da metade da renda mensal para o pagamento das dívidas. Já entre aqueles com maiores salários, o índice cai pela metade, o que sugere que o superendividamento está concentrado entre os mais pobres.
Em média, durante 2022, o brasileiro gastou, a cada R$ 1 mil, R$ 302 em dívidas. No total, 70% das famílias comprometeram pelo menos 10% da renda com essa finalidade. Mais de 1/5 dos endividados tiveram de gastar, no mínimo, metade do salário para pagar dívidas.
Durante a coletiva de imprensa, o diretor de Economia e Inovação da CNC, Guilherme Mercês, afirmou que é importante que sejam adotadas medidas que possibilitem uma redução nos juros e na inflação, com uma nova âncora fiscal para a gestão das contas públicas. “Em mais de dez anos, nunca as pessoas se sentiram tão endividadas e o que a Peic demonstra é que o superendividamento é principalmente um problema para as famílias de baixa renda. Se esse endividamento diz respeito ao custo dos créditos e da inflação, um dos fatores essenciais para resolver isso é ter uma economia brasileira com juros mais civilizados, porque taxa de juros alta é sinônimo de dívidas caras, sempre. Portanto programas de renegociação de endividamento como os que estão sendo anunciados são fundamentais e estancam as angústias das pessoas e famílias. Mas em termos estruturais, o que vai resolver esse problema é uma taxa de juros mais baixa,” afirmou Mercês.
Cartão de crédito e carnê de loja ganham espaço
Modalidades de crédito de curto prazo, como o cartão e o carnê de loja ganharam espaço nos últimos anos. Entre os endividados, 86,6% tinham dívidas no cartão de crédito, mesmo sendo uma das opções mais caras disponíveis no mercado. Em 2013, o percentual era de 75,2%.
As pessoas com renda mais baixa estão usando o cartão de crédito para comprar alimentos e medicamentos, além de pagar contas de luz e telefone, por exemplo, para postergar o gasto para o mês seguinte ou mesmo parcelar esses valores”, afirma.
O carnê de loja também aumentou sua participação no pós-pandemia e 19% dos endividados devem ao varejo. Segundo a pesquisa, trata-se de um sinal de que o consumidor buscou crédito fora das linhas tradicionais. De outro lado, evidencia também a estratégia do varejo de recorrer ao carnê para fisgar e fidelizar clientes.
O orçamento familiar apertado fez que com que despesas básicas se transformassem em dívidas, como comida, roupa e remédio. Um sinal disso é que o endividamento motivado pelo financiamento da casa própria ou do carro está nos patamares mais baixos desde 2019.
Quando se observa o perfil do endividado, ele é composto majoritariamente por mulheres, jovens com até 35 anos, pessoas com ensino médio incompleto e até 10 salários mínimos de renda, principalmente no Sul e no Sudeste. Entre os inadimplentes (com dívida em atraso), o perfil é bastante similar, mas com predominância maior nas regiões Nordeste e Norte.
— As mulheres representam pouco mais da população brasileira, 52%, e existem mais mulheres chefiando famílias, que estão no setor informal e precisam equilibrar todos os “pratinhos” e, por isso, não conseguem entrar no mercado formal. Isso é um grande dificultador para você ter estabilidade na renda — explica Izis Ferreira, economista responsável pela pesquisa.
Inadimplência também é recorde
Em 2022, houve um crescimento de 3,7 pontos percentuais no número de famílias com dívidas atrasadas em relação a 2021: de cada 10, três atrasaram algum pagamento. Esse valor é o maior desde o início da pesquisa. O perfil do inadimplente é também de uma mulher, no entanto, com mais de 35 anos, Ensino Médio incompleto, na faixa menor de renda e moradora do Norte ou Nordeste.
Além disso, entre os inadimplentes, 43% atrasaram as dívidas por mais de três meses e 10,7% afirmaram que não terão como quitar os débitos. Esse número dobrou em relação a 2014, quando foi atingido o menor nível da série. Entre as famílias de renda menor, 32,3% não têm condições de pagar os atrasados, enquanto entre as que recebem salários maiores, esse índice fechou o ano em 13,3%.
Reação da política econômica
O cenário macroeconômico do ano passado, de lenta recuperação do mercado ode trabalho e algos juros para a contração de crédito, devem ainda respingar em 2023.
Para Mercês, a implementação de propostas da área econômica prometidas pelo presidente Lula e sua equipe, como o pacto de medidas anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a possibilidade de correção do valor do salário mínimo de R$ 1.302 para R$ 1.320 e de aumentar a faixa de isenção de Imposto de Renda para R$ 5 mil, podem desafogar os orçamentos familiares.
— A criação de prazos prolongados para pagamento de dívidas, com condições especiais para pessoas de baixa renda, são essenciais para reverter esse quadro. Isso vai demandar uma descida na taxa de juros. E a mudança na tabela do Imposto de Renda pode diminuir o peso da dívida no orçamento, tem efeito prático em aumentar a capacidade de pagamento — explica.
No entanto, o elemento mais importante, segundo a economista Izis Ferreira, é a implementação de políticas para ter o que chama de “letramento financeiro”, de explicar à população mais carente que usa crédito, como quem aplicava o consignado no então Auxílio Brasil, pontos como o que é crédito e saber identificar o que pode ser considerado dívida.
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