CNH sem autoescola já foi bandeira de Bolsonaro e agora é abraçada por Lula

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) trabalha para promover o fim da obrigatoriedade de autoescola para tirar a CNH (Carteira Nacional de Habilitação).

 

A proposta deve ser implementada nos próximos meses por meio de resolução do Contran (Conselho Nacional de Trânsito), após consulta pública aberta na última quinta-feira (2).

 

Curiosamente, a CNH sem autoescola, que deverá passar a ser facultativa, foi uma das bandeiras da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que não conseguiu colocar em prática durante seu mandato.

 

 

Na época, a alegação de Bolsonaro para tornar as aulas práticas e teóricas facultativas foi a mesma atualmente defendida por Lula, seu adversário político: desburocratizar o processo, reduzir o custo e tirar milhões de condutores não habilitados da ilegalidade.

 

A diferença é que o atual governo, ao que tudo indica, conseguirá mudar a regra – algo que seu antecessor não obteve êxito.

 

De Bolsonaro a Lula

Em julho 2019, ainda no início do seu mandato, Jair Bolsonaro defendeu abertamente o fim das autoescolas, dizendo, em uma de suas lives semanais, que o processo de habilitação no Brasil era “burocrático e caro”.

 

“Eu acho que nem deveria ter exame de nada. Você faz uma parte escrita e vai para a prática, nem precisa cursar em autoescola”, afirmou na época.

 

Na época, o então presidente enviou ao Congresso um projeto de lei com mudanças no CTB (Código de Trânsito Brasileiro), incluindo o aumento da validade da CNH para dez anos, maior pontuação para suspensão da habilitação e o fim dos simuladores – mudanças que, de fato, foram aprovadas pelos parlamentares.

 

Ao mesmo tempo, propostas inicialmente incluídas no projeto, como o uso opcional das cadeirinhas infantis e a autoescola facultativa, acabaram excluídas pelos parlamentares do texto final.

 

Na ocasião, a autoescola facultativa também foi defendida pelo deputado federal Kim Kataguiri (União-SP), por meio do Projeto de Lei 4474/20, mas não chegou a ser discutido em plenário até o momento.

 

Agora, sob Lula, o mesmo tema reaparece, mas por outro caminho. Para não ter que barganhar como o Congresso, a proposta da Senatran (Secretaria Nacional de Trânsito) não mexe no CTB, e sim em resoluções do Contran, o que permite a mudança sem aval do Legislativo.

“Tudo está dentro da nossa governança. Não precisa de projeto de lei. A gente ouviu os Detrans (departamentos estaduais de trânsito), estamos ouvindo os instrutores e vamos aprimorar a proposta com base na consulta pública”, afirma o secretário nacional de trânsito, Adrualdo Catão, em entrevista a esta coluna.

 

Catão explica que a ideia não é “acabar com as autoescolas”, mas retirar a obrigatoriedade de passar por elas. O foco, segundo ele, é reduzir barreiras de acesso para quem quer se habilitar e, de quebra, atacar um problema que o governo considera urgente: os 20 milhões de brasileiros que dirigem ou pilotam sem CNH, a maioria em motos. Problema que o governo não enxerga como falha de fiscalização, mas como reflexo do alto preço do documento.

 

“Hoje, o custo médio da habilitação é de R$ 3 mil a R$ 4 mil. É um valor proibitivo para grande parte da população. Nossa proposta é simples: dar acesso e cobrar desempenho. Quem souber dirigir, passa. Quem não souber, não passa”, diz.

 

Com a mudança, a estimativa da Senatran é que o custo básico caia para R$ 750 a R$ 1 mil, já que o candidato poderá contratar apenas as aulas que considerar necessárias – ou até nenhuma, se achar que está preparado. Para quem não sabe dirigir, no entanto, a contratação do curso, ou de um professor autônomo, se fará necessária, pois não será permitido treinos com pessoas não cadastradas pelo Detran.

 

Como deverá ser a CNH sem autoescola

De acordo com o texto proposto pela gestão Lula, o curso teórico continuará obrigatório, mas com novas alternativas: poderá ser feito gratuitamente em uma plataforma EAD do governo, em escolas públicas de trânsito ou em autoescolas, caso o candidato prefira.

 

A avaliação final deve acontecer em vias públicas (como já prevê a lei, mas em alguns locais não é cumprido) e o sistema de “faltas eliminatórias” dará lugar a uma pontuação gradual, segundo Catão, “para reduzir o nervosismo dos candidatos e tornar o exame mais técnico”.

 

Autoescolas protestam

A Feneauto, federação que representa o setor, reagiu com desconfiança.

 

“Não é flexibilização, é substituição”, resume Ygor Valença, presidente da entidade.

 

Segundo ele, o modelo abre espaço para precarização e pode tornar o serviço mais caro, a exemplo do que ocorreu com os aplicativos de transporte. “Uma aula em autoescola custa em torno de R$ 70. Já um serviço de motorista por aplicativo, como o Uber, chega a R$ 120 por hora. Pode acabar mais caro e com menos qualidade.”

 

Catão rebate as críticas e garante que o objetivo não é eliminar as empresas, mas abrir o mercado.

 

“Eu não quero confronto com as autoescolas. A proposta só é ruim para quem depende de reserva de mercado. Em vários países, não há obrigatoriedade e as escolas funcionam bem. O cidadão deve poder escolher: quer aprender numa autoescola ou com um instrutor autônomo?”

Consulta pública aberta

A proposta ficará disponível por 30 dias no Participa + Brasil, plataforma oficial de participação social do governo federal. Depois, será avaliada pelo Contran, que reúne representantes de órgãos estaduais e municipais de trânsito.

 

Com o aval direto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Senatran aposta que o novo modelo pode simplificar o acesso à CNH e formalizar milhões de condutores hoje fora do sistema – e, portanto, sem serem penalizados por suas infrações.

 

No entanto, a medida resgata uma bandeira que há cinco anos era vista como símbolo do bolsonarismo, junto com outras propostas para flexibilização das normas de trânsito, como aumento da pontuação necessária para perder a CNH e redução no número de radares em rodovias federais.

 

Convergência de Lula e Bolsonaro

Não é a primeira vez que o governo Lula repete uma ação da gestão de Bolsonaro quando o assunto é trânsito.

 

Em agosto deste ano, o contingenciamento de R$ 31,3 bilhões no Orçamento de 2025, anunciado pelo governo Lula para garantir o cumprimento da meta fiscal, provocou um efeito colateral preocupante: a suspensão do registro de infrações por radares em parte dos 47 mil quilômetros fiscalizados nas rodovias federais. Os radares só voltaram a operar por decisão judicial.

 

Na época, esta coluna teve acesso a cópias da Nota Técnica nº 332/2025 e do Despacho nº 10844/2025, atribuídos à Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) e registrados no Sistema Eletrônico de Informações (SEI). Os documentos indicavam que a verba destinada ao PNCV caiu de R$ 364,1 milhões para R$ 43,36 milhões na Lei Orçamentária de 2025, valor insuficiente para manter os contratos de fiscalização eletrônica.

 

Apesar de ter sido um problema de gestão, e não decisão direta do governo, o resultado foi o mesmo pleiteado por Bolsonaro em 2019: reduzir a fiscalização eletrônica nas estradas federais