Num país marcado por uma profunda desigualdade social, a crise não tem sido igual para todos. Enquanto as famílias de maior renda utilizam os recursos guardados com lazer, as mais pobres se desfazem do dinheiro poupado para pagar despesas básicas do dia a dia e quitar dívidas.
O abismo entre as classes sociais foi mensurado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV). O levantamento mostra que 37,3% e 28,1% das famílias com renda mensal de até R$ 2,1 mil usam os recursos poupados para o pagamento de despesas correntes e quitação de dívidas, respectivamente. Na faixa seguinte, entre os brasileiros com ganhos acima de R$ 2,1 mil e até R$ 4 mil, esses dois itens representam quase 40% do principal uso das reservas das famílias.
Já o principal destino das reservas financeiras de 25,9% das famílias com renda acima de R$ 9,6 mil vai para gastos com viagens de férias. E 22% utilizam os recursos poupados para com compras de bens duráveis, como eletrodomésticos e eletrônicos.
“É uma situação bem difícil para as famílias de renda mais baixa”, afirma Viviane Seda Bittencourt, economista do Ibre e responsável pelo levantamento. “O mercado de trabalho tem uma recuperação lenta e está competitivo, o que torna a informalidade muito grande.”
Em agosto, último dado disponível, o desemprego do país recuou para 13,2%, mas a taxa de informalidade passou de 40% no trimestre encerrado em maio para 41,1%, no trimestre encerrado em agosto, alcançando 37 milhões de pessoas.
“A classe de menor poder aquisitivo está se endividando. Não tem reserva, e está usando o pouco que tem para quitar a despesa corrente”, afirma Viviane.
Endividamento recorde
Segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), apurada mensalmente pela Confederação Nacional do Comércio (CNC), 74,6% das famílias estão endividadas – o maior patamar já registrado pelo levantamento, iniciado em 2010.
Em outubro do ano passado, o porcentual de endividados era de 66,5%. Em setembro último, estava em 74%.
“Esse número veio crescendo de forma bastante expressiva nos últimos meses. Somente na passagem de setembro para outubro é que houve uma arrefecida no crescimento do endividamento, e isso tem a ver com o aumento dos juros”, afirma Izis Ferreira, economista da CNC.
A economista também aponta que o orçamento de pobres e ricos mostra um comportamento diferente:
- As famílias que ganham até 10 salários mínimos estão se endividando para a compra de itens de necessidade básica, como alimentos e medicamentos;
- Entre os que ganham acima de 10 salários mínimos, o endividamento é para o consumo de serviços, num momento de reabertura da economia.
“A inflação para as principais classes de despesas das famílias mais pobres está pesando muito no orçamento. São itens como transporte, alimento, e energia elétrica”, afirma Izis. “Com a inflação reduzindo o poder de compra, essas famílias estão precisando usar mais o crédito.”
Cartão de crédito vira salvação
Na esteira do avanço do endividamento, o cartão de crédito bateu recorde e representou 85% do endividamento das famílias brasileiras em outubro, segundo a CNC.
“O cartão de crédito é o meio de pagamento muito difundido no Brasil”, diz Izis. “Também é a modalidade de dívida que mais cresceu no último ano”.
Em relação a outubro de 2020, o endividamento pelo cartão de crédito cresceu seis pontos percentuais.
“O cartão tem sido buscado pelas famílias consideradas mais pobres e pelas famílias mais ricas, mas por motivos diferentes. Para os mais pobres, é utilizado para dar um fôlego para renda, enquanto os mais ricos usam porque estão voltando a consumir serviços”, afirma Izis.
Endividamento não quer dizer inadimplência
A alta do endividamento não está relacionada ao aumento da inadimplência. Na pesquisa de outubro, por exemplo, 25,6% das famílias tinham alguma conta em atraso. Há um ano, 26,1% estavam nessa situação.
“Como essa inadimplência está abaixo do ano passado, isso indica que, por mais que as pessoas estejam sofrendo com a inflação em alta, estejam voltando ao consumo e precisando do crédito para isso, elas ainda estão conseguindo manter alguma capacidade de pagamento.”
No entanto, segundo a economista, há um sinal de alerta ligado, por causa dos elevados juros cobrados no crédito rotativo – quando não há o pagamento da fatura do cartão.
“O crédito não pode ser tratado sempre como o vilão. Ele até tem ajudado as famílias a sustentar o consumo e a pagar as suas despesas, minimamente”, afirma Izis.
“Mas é preciso um certo cuidado com essa modalidade porque, de fato, quando a gente entra (no crédito rotativo), estamos falando de um custo elevado para o consumidor que não consegue pagar a fatura do cartão de crédito.”
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Por Anna Carolina Papp, Lizandra Rodrigues e Luiz Guilherme Gerbelli, GloboNews e g1